Sofro de um mal muto grande que é acreditar no ser humano. Pois é, coisa estranha dizer que isso é um mal mas a cada dia que passa, perco um pouco mais das esperanças neste que se acha o “ser”.
Em minha última estada em João Pessoa almocei no Mangai, o restaurante que considero o melhor de comida nordestina que conheço na face da Terra. Desculpe-me mas eu posso falar com conhecimento de causa pois lá morei durante um ano e meio e frequentei senão todos, a grande maioria dos restaurantes pessoenses. Além disso, minhas andanças por vários estados e estradas me dão esta condição de “expert em restaurante ó xente”.
O lugar é simplesmente uma verdadeira ilha de pecados da gula onde é possível se fartar tanto da típica comida nordestina quanto de outras mais tradicionais. Lado a lado desfilam desde carne de sol até picanha, passando por feijão verde, amarelo, carioquinha, fava, buchada, palmito, palma e etc. Até no coentro maneram porque ninguém é de ferro (exceto o Robert Downey Jr.).
Como um local bom e familiar, não é permitido fumar dentro do recinto (mesmo sendo aberto). Concordo com a decisão da proprietária (uma paraibana para lá de arretada!) e por isso, ao término da refeição e vendo que o papo ainda se estender, resolvi ir à porta me drogar. Lá estava um misto de segurança com porteiro e entregador de cartões de plástico usados para que os consumidores fizessem a conta da gula. Fiquei observando o sujeito e algo me chamou a atenção e que foi depois assunto para conversa com ele: a forma como as pessoas tratam seus semelheantes.
Por natureza o paraibano é arrogante principalmente aquele que possui um pouco mais de status e principalmente com aquele que está em nível inferior ao mesmo. Eu mesmo já fui hostilizado em um mercado certa vez quando uma mulher toda folgada simplesmente começa a falar besteiras atrás de mim quando educadamente cedi a vez para uma senhora já de idade. Coisas como “estes quaisquer que vem em mercado” e “ainda tenho que ficar aturando esta gentinha” foram as pérolas que ouvi. Claro que ela não esperava “o Paulino” diante dela e com aquela minha típica cara de sarcástico, puxei lá do fundo todo o meu sotaque paulista (o que não precisa muito) e respondi: “a senhora deveria aproveitar suas compras e levar um pouco de soda cáustica para passar na latrina que é sua boca”. Desconcertada, saiu da fila para reclamar com um gerente ou coisa assim, o que não iria resolver nada pois mexer com paulista não se faz, afinal, até mesmo o gerente pensa que somos donos do Brasil (mesmo não sendo bosta nenhuma).
E diante do restaurante naquele domingo pude perceber o mesmo. Aquele coitado que lá estava trabalhando honestamente, é exotado de todas as formas e olhado de cima em baixo quando tenta executar suas funções. Dondocas com roupas de gosto duvidoso compradas em alguma grande capital e óculos que parecem mais pára-brisas de carretas, desdenham o pobre coitado que, vindo do interior do estado com dois filhos (depois fiquei sabendo dele), tenta em pleno domingo trabalhar um pouco em um restaurante para, além do salário, poder levar uma comida um pouco melhor para sua casa.
Coisas assim, além de me irritar profundamente e me deixar com aquela vontade de resolver o assunto da forma mais animalesca possível, me deixam cada vez mais com aquele pensamento de “fudeu”. Mas não é aquele “fodeu”; é o fudeu mesmo; fomos para o buraco sem dó nem pena. Lamentável em todos os sentidos.
Mas por quê de agora lembrar disso? Simples. Esta noite preparando as fotos de Phnom Penh para que minha companheira finalize o primeiro álbum de nossa viagem pelo sudeste asiático (está maravilhoso!), algumas me chamaram a atenção e me trouxeram as lembranças de como o ser humano pode, na sua maioria das vezes ser pior que um animal. No meio das fotos de crianças maltrapilhas encontradas em alguns pontos turísticos, trânsito caótico e lixo urbano, algumas me revelam o quanto podemos ser intolerantes.
Durante o período de 75 a 79 o Camboja passou por um genocídio pior que aquele visto na II Guerra contra os judeus. Pior pois aconteceu na história contemporânea de nosso mundo e mesmo após as lições aprendidas (aprendidas???) na Europa, o fato se repetiu. A placa acima mostra as regras que deveriam ser seguidas pelos prisioneiros da famigerada S-21, uma escola que foi transformada em prisão pelo regime de Pol Pot com a finalidade única e exclusiva de “prepará-los” para o que vinha depois: o extermínio. O resultado…
Quando vejo coisas assim, além da tristeza e do choro, vem também o seguinte pensamento: como chegamos nisso? A resposta é simples. Chegamos com a intolerância contra porteiros, seguranças, entregadores de cartões, índios, empregadas domésticas, filhos, amigos, colegas, estranhos. Esta mesma intolerância com aquele que é diferente, que é “inferior” traz desgraças como estas. Intolerâncias assim fizeram com que a caça aos judeus fosse levada adiante e também é a mesma força que move a população contra os Nardeli que (dizem) jogaram a filha da janela. Não é questão de piedade, de dó. É questão de tolerarmos as diferenças pois julgar é fácil e pode levar qualquer um à morte mas, traz à vida também?
No fim, as palavras do pequeno Antônio (nome do porteiro) ainda me dão um fio de luz para acreditar: “é difícil mas Deus sabe separar quem é bom de quem é ruim”. Que assim seja realmente pois não gostaria de partir dessa para outra tendo que levar pacotes de soda cáustica para a distinta madame passar na boca suja.
Obs: para quem domina menos o inglês que eu (que também não é lá aquelas coisas), a tradução das regras da S-21 é a seguinte:
1) Você deve responder de acordo com minhas perguntas – Não se vire.
2) Não tente esconder os fatos criando pretextos para isso ou aquilo. Você está estritamente proibido em me contestar.
3) Não seja tolo ou você será um capítulo que se atreve a contrariar a revolução
4) Você deve responder imediatamente minhas perguntas sem desperdiçar tempo em reflexão
5) Não me diga nada sobre suas imoralidades ou a essência da revolução
6) Se você receber chicotadas ou choques elétricos você não deve chorar
7) Não faça nada, sente-se e aguarde pelas minhas ordens. Se não existirem ordens, mantenha-se quieto. Quando eu perguntar alguma coisa para você, você deve responder imediatamente sem protestar
8 ) Não arrume pretextos sobre a ordem do Kromin Kampuchea para esconder seu segredo ou traidor
9) Se você não seguir as regras acima, você irá receber vários choques elétricos
10) Se você desobedecer qualquer ponto deste regulamento você irá receber dez chicotadas ou cinco choques elétricos.
Legal não é?
Bruno Matos
21/09/2011 — 15:40
Bom, suas palavras são contráditórias, quisá preconceituosas. Mas o blog eh bem interessante. Parabèns.
Lene Viegas
08/03/2009 — 21:06
Estava eu, procurando mensagens que definissem o que tenho sentido pelo “ser humano”, pelas muitas pancadas que tenho levado pela cara, que acabei encontrando o seu blog. Gostei muito das sua palavras e pricipalmente das experiências vividas. Gostei tanto, que li não somente um, mais vários artigos.
Tudo de bom!