Quando se fala da Indonésia lembra-se rapidamente de quatro coisas: terremotos, vulcões, tsunami de 2004 e Bali. Destas, a última não é a verdadeira Indonésia, mas sim um oásis de tranquilidade e consumismo no meio do nada (claro que sem atentatos terroristas).
No feriado passado fui conhecer a verdadeira Indonésia indo para Kupang, capital de uma província enfiada em uma das dezessete mil ilhas do país. Esta localidade pode ser classificada como a “verdadeira Indonésia”; poucos falando inglês, diferenças sociais gritantes, serviços ridicularmente precários e um ar de esquecidos no mundo. Definitivamente não é um lugar turísitico, servindo somente de ponte para outras ilhas da região que possuem algum atrativo para quem é de fora.E esta era minha intenção e de meu companheiro de viagem. Esperávamos conseguir um vôo para a ilha de Flores a fim de conhecer os lagos coloridos do vulcão Kelimutu. Infelizmente como os horários não batiam e precisávamos retornar à Dili no domingo pela madrugada, deixamos para outra oportunidade e usamos o tempo para conhecer a cidade e sua gente, algo que nos forneceu uma boa visão do que é o restante do país.
O roteiro e a viagem
Kupang faz parte da ilha de Timor e por isso a viagem foi feita por terra com a “empresa” Lifau Travel durante doze horas de paisagens idênticas ao Timor-Leste e de muitos locais do sertão brasileiro. Saímos de Dili por volta de 08:00 horas e após parar em vários bairros da cidade para embarcar pessoas que iriam viajar conosco, entramos na estrada. Um sol escaldante prometia queimar qualquer coisa que se atrevesse estar sob ele (inclusive meu braço direito que ficou mais vermelho que pimenta malagueta). A estrada, mais conservada que a do lado norte (Baucau/Lospalos) era estreita como se fosse feita para carros de boi, o que obrigava nosso motorista a surrar incansavelmente a buzina para alertar outros carros, pessoas, porcos, cabras, bois e galinhas que acreditavam ser a estrada uma extensão do pasto. Mesmo com as frenéticas buzinadas, uma viatuda da UNPOL (Polícia da UN) pilotada por um verdadeiro tarado por velocidade, arrancou o espelho de nosso carro machucando um pouco o braço do motorista que xingava em tetum o sujeito por causa do prejuízo.
Da saída de Dili até a fronteira, poucas novidades. Fomos seguindo pelo litoral onde podíamos ver praias de águas claras com vários tons de azul e pequenas ondas que se quebravam nas pedras da orla erodindo-as e criando diversos monumentos naturais à beira-mar. Palhoças de todos os tamanhos povoavam os acostamentos (sic!) fazendo pequenos círculos ao redor de poços ou bombas de água e aqui e acolá, víamos uma construção feita de tijolos. Tudo rústico e tudo pobre nas pequenas comunidades que passávamos rápido observando ora o mar, ora as montanhas secas pela falta de chuvas da época de estiagem.
Na fronteira, a espera. De um lado Timor-Leste com seu pequeno posto e policiais desarmados da PNTL (Polícia Nacional de Timor-Leste). Do outro, a Indonésia com um arco enorme sobre nossas cabeças demarcando a separação de terras. A travessia foi feita a pé pois nossa condução não entra no país vizinho, mas possui um “code-share” com uma filial do outro lado da fronteira que faz a rota desde o posto até Kupang. Apresentamos os passaportes e passamos por uma revista que poderia ser chamada de “olhadela”, nada mais que isso. Entretanto notamos que existe um ranço para com os timorenses pois o tratamento dado à eles tanto no lado de Timor-Leste quanto da Indonésia é no mínimo estranho. Falta cordialidade, falta educação, ao contrário dos “malais” que são tratados de forma mais educada (o que não quer dizer nada pois duvido que um polícia indonésia pense duas vezes antes de passar fogo em qualquer um de nós).
Esperamos por cerca de quarenta minutos nossa nova condução que chegava de Kupang. Desta vez, um senhor com ar de “todo-poderoso” pilotava o micro-ônibus. Suas feições era de uma pessoa truculenta e dona de si, o que se mostrou verdade por várias vezes durante a viagem quando se exaltava com algum veículo mais lento à frente. Como característica comum aos dois motoristas, o prazer insaciável de enfiar a mão na buzina até esta se esgoelar e o mal gosto pela música no último volume vinda de um velho toca-fitas, o que nos deixava pensando o que era menos pior; a barulheira do carro, da estrada ou da fita.
Quarenta minutos de viagem e chegamos a Atambua, principal cidade indonésia naquela região. Neste local paramos para almoçar em um restaurante que no Brasil seria menos que uma portinha de estrada. No cardápio, gulim: arroz (aos montes), cancum (uma espécie de rúcula ou similar), pedaços de frango que era mais osso que frango e algumas coisas estranhas que meus olhos e estômago ainda não identificaram. Com uma fome daquelas comemos apetitosamente (até que o frango estava bom) observando a batalha travada entre nosso motorista e sua montanha de arroz que em poucos minutos foi reduzida a nada. Uma cena digna de etíopes na fila da ração.
Acabado o almoço, tocamos para a estrada novamente mas desta vez pelo meio da ilha (o que fazia o sol ser mais forte do que já era). As horas passando devagar, a música alta cantada em português por sabe lá quem e as buzinadas eram mescladas com as pequenas palhoças que desta vez eram redondas e iam com seus telhados até o chão. O restante, tudo o mesmo: a mesma pobreza, as mesmas condições inimagináveis, o mesmo calor, a mesma poeira. No final do dia, há noventa quilômetros de Kupang pudemos apreciar um belo pôr-do-sol com matizes fortemente vermelhas e um disco amarelo no meio. Cenas que valeram o cansaço da viagem e a chegada na cidade já com noite alta.
Kupang
Como não tínhamos hotel reservado, pedimos ao motorista que desta vez menos amargo (creio que por causa da noite), nos levasse à um hotel qualquer que fosse barato. A escolha não poderia ser mais estranha. Um local com alto preço (para a região) e com uma barata no quarto, prontamente assasssinada pelo meu companheiro. O banheiro, com uma bathtub verde (sim, verde!) que ele precisava se agachar para tomar banho (ninguém mandou ser magrelo e grandão). O que salvou foi a janta pedida cujo o peixe de tão grande, caía pelas bordas da travessa. Depois, cama mesmo num calor de rachar pois na TV somente passavam coisas que nada entendíamos ou que tinham tanta graça quanto a missa do galo.
Logo cedo tomamos café (desta vez mirrado) e saímos para tentar encontrar uma forma de ir à Flores. A uma quadra do hotel encontramos uma agência de viagens que nos impressionou. Um atendimento extremamente cordial e com bom inglês feito por duas senhoras que não mediram esforços para nos ajudar na empreitada mas que mesmo mexendo de cá para lá não tinha solução visível. O resultado foi nos contentarmos com a estada na cidade. Seguimos em direção ao mar a procura do que fazer. No caminho procurávamos uma locadora ou portinha onde pudéssemos conseguir duas motos para economizar solado e nos dar mais mobilidade, mas sem sucesso. Na orla, algumas fotos e a visão das ilhas próximas da cidade nos desviava da lembrança do sol causticante mas não por muito tempo. Era começar a andar e o suor descer pelo corpo, encharcando a camiseta.
Entramos em uma rua que pode ser considerada a 25 de Março da cidade; lojas de ambos os lados que vendem todo o tipo de quinquilharia chinesa variando desde motocicletas até parafuso de cabo de serrote. E no meio desta baderna, areia, tijolos, mais motocicletas, gente e carros. Uma loucura só. Esta rua é paralela ao mar e por isso resolvemos ir caminhando para ver onde terminava. No caminho, uma barata! Digo, um brasileiro! Costumo dizer que brasileiro é como barata, encontra-se em qualquer lugar do mundo. E este estava com uma camisa do Atlético Mineiro que não deixava nenhuma dúvida de sua nacionalidade.
O dito cujo em questão é colega nosso em Timor e professor/técnico de futebol que estava passando o feriado com a companheira em Kupang. Conversando, nos deu a dica de um hotel melhor que o nosso pela metade do preço. Como ficava no final da rua (estávamos quase lá), não pestanejamos e fomos verificar. Chegando no hotel, o preço era realmente a metade do que estávamos pagando (Rp 160.000) e as acomodações melhores (inclusive sem barata). Então, toca correr para o outro hotel, fechar a conta, pegar as mochilas e trocar de acomodações. Tudo isso em quarenta minutos.
E agora? O que fazer?
Já de casa nova precisávamos arrumar o que fazer? Passava da uma da tarde e resolvemos comer, preferencialmente alguma coisa ocidentalizada. A solução: KFC no “shopping” da cidade. Mas como chegar lá? Bembo!
As “bembos” são as microlets do Timor-Leste, “nano-ônibus” onde conseguem enfiar mais de 25 pessoas dentro. E tal qual Timor, em Kupang elas são em sua maioria pilotadas por garotos que não possuem mais que vinte e poucos anos e que duvido terem habilitação ou coisa do tipo. Uma verdadeira aventura mas como já estávamos “na lama”, resolvemos mandar ver.
Ao entrar na bembo vem a sensação de olhos por todos os lados. Neste momento me dei conta o quanto um estrangeiro pode ser “estranho” por estas bandas. Todo mundo olhava com curiosidade como se fôssemos aliens saídos de um planeta distante. Tudo bem que estou acima do peso e George é alto para os padrões asiáticos mas daí a sermos motivo de espanto é demais!
Vinte minutos de bembo e estamos diante do shopping. Na verdade nada mais que uma galeria com lojas, lojinhas, marreteiros e uma lojona. E claro, o KFC onde comemos o tradicional frango frito (sem gripe aviária). Aqui um aparte: o KFC na Indonésia serve tudo com arroz! Nunca tinha visto isso nos outros e achei muito estranho (claro que não comi, me poupe!).
A vantagem na Indonésia “fora Bali” é o preço. Tudo é barato. Comida é barata, bebiba, cigarro, transporte. Não pense que a comparação está sendo feita só com Timor. Também é feita com o Brasil e mesmo assim, barato. Um prato de gulim (que é comida pacas) custa a bagatela de 80 centavos de dólar. Uma coca-cola em lata, 60. Um litro de gasolina (batizada, of course), cinquenta centavos. Então, toca se empanturrar de frango e de uma mirinda rosa que mais parecia tinta de caneta grifa-texto.
Demos uma volta no shopping e nos vimos novamente na mesma situação: nada para fazer. Decidimos então tentar trocar o bilhete para voltar à Dili. Já que não conseguimos nosso intuito (ir à Flores), restava o ar-condicionado de casa a trezentos e poucos quilômetros dali. Voltamos para o hotel (de bembo) e pedimos para a recepcionista ligar na companhia para trocar a passagem. Pelo fato do dito cujo não falar lhufas de inglês, apelamos para a moça fazer a vez de intérprete. Na primeira tentativa o sujeito não estava mas retornava dentro de uma hora. Para não ficarmos esperando resolvemos encontrar um lugar para acessar a Internet. O único local ficava na companhia telefônica, diversas quadras acima de onde estávamos. Resultado, outra bembo e mais quinze minutos de aventura pelas ruas de Kupang.
Na telefônica acessamos a Internet por cerca de uma hora. Na saída, gravei em vídeo uma figura do outro lado da rua que vendia em sua barraquinha CD’s com as mais variadas músicas indonésias e que ficava cantarolando-as numa cena muito engraçada. Gostei de uma das músicas e resolvi comprar o CD, tarefa árdua quando você não entende o que o cara fala e ele não entende o que você fala. A solução foi mostrar o vídeo que gravei dele cantando e dançando para que pudesse ouvir a música. Depois de várias risadas, reconheceu e entendeu o que eu queria. O valor: Rp 10.000 (US$ 1.10) e saí então com um CD de rap indonésio, sensacional!
De volta ao hotel a grata surpresa que a recepcionista tinha conseguido trocar a passagem e naquela madrugada estaríamos novamente na estrada enfrentando outras doze horas de asfalto. Dos males o menor.
Já noite, saímos para comer naquele que é considerado o melhor restaurante da cidade. Crentes que iríamos encontrar um restaurante francês, caímos de queixo logo na entrada. Uma doida varrida começou a cantar coisas que não reconhecíamos a plenos pulmões, fazendo par com um tecladista de igreja evangélica de periferia que não deixava qualquer morto sossegado (acho que era pelo dia de Finados). O atendimento, menos um. Dez minutos para explicar o que queríamos, mais quinze para chegar um garfo e um prato e mais dez para fazerem um suco. Simplesmente parecia que não estávamos ali. O que salvou foi a comida bem preparada.
Mas claro, poderia ser pior! Neste restaurante passei a situação mais vexatória de minha vida. A maioria não sabe mas os banheiros típicos indonésios não possuem vaso (ou privada, como queira). O “trono” é um buraco no chão com uma porcelana em volta feita para você mirar ali a bazuca anal (como já cantavam os Mamonas) e fazer o que deve ser feito. E pior, não tem papel higiênico, somente água para lavar o botico e claro, empurrar os dejetos buraco abaixo. Mas o pior ainda era o banheiro que mais parecia uma gruta encravada em uma montanha. Algo surreal e que nunca tinha visto em toda a minha vida, fosse no país que fosse.
Meu amigo, honestamente sou muito ocidentalizado para coisa deste tipo mas não tinha como evitar. Toca tirar metade da roupa para não sujar e ficar naquela posição de “moitinha”. Simplemente vergonhoso! Finalizando, despejei mais da metade da água do balde no buraco e saí correndo para lavar as mãos na pia ao lado, xingando meus intestinos de tudo que é palavrão por ter meu proporcionado situação tão repugnante.
A volta
As quatro da matina cravado chega o micro-ônibus. Nos acomodamos e toca rodar. Da mesma forma que na primeira viagem, passamos por vários lugares para pegar passageiros. O madrugar misturado com o balanço do ônibus e o silêncio propiciado pelo tape mudo e a falta de buzina fez com que dormissê-mos pelo menos mais duas horas (George dormiu mais). Quando percebi já tínhamos rodado quase duzentos quilômetros, uma dádiva certamente.
Oito da manhã paramos para o café da manhã. Certo que iria tomar café (mesmo que fosse típico indonésio, com borra no fundo), desacreditei quando entramos em um “restaurante” igual ao que paramos no almoço da vinda. O pior de tudo não foi ficar sem tomar café mas sim ver o povo “almoçando” as oito da manhã! Arroz, frango, ovo cozido, cancum e água. Simplesmente não deu. Fiquei sem comer e me contentei com uma lata de coca-cola e uvas que tinha comprado no dia anterior (e o medo de enfrentar outro banheiro daquele onde fica?).
Finalizado o almoço (ou seria café da manhã?), voltamos à estrada para mais duas horas até a fronteira. No caminho, as mesmas paisagens, as mesmas vacas, porcos, galinhas, pessoas e campos de arroz esturricados por causa do calor. Dentro do ônibus um senhor puxa conversa. Percebendo que falávamos português, resolveu colocar o aprendido por ele na época da colonização em dia e travamos um bom papo. Mora em Kupang e estava indo visitar os filhos e netos em Viqueque, uma cidade timorense do outro lado da ilha. Para chegar lá inevitavelmente teria que ir a Dili onde um de seus filhos o aguardava. Várias histórias (principalmente das namoradas) e a repetida reclamação de falta de emprego para os filhos aliviaram um pouco a viagem.
Chegamos na fronteira e desta vez o atendimento foi rápido, pelo menos do lado indonésio. Do lado timorense o posto estava fechado para almoço. Com isso perdemos duas horas entre a espera e fazer a imigração. Com o sol a pino e dentro de uma salinha de lata (um contêiner) a espera se tornou mais cansativa ainda.
Feita a imigração, novamente para a estrada (não esqueça, trocamos de ônibus e motorista). No caminho a solonência começa a bater e por várias vezes me peguei pescando ou dormindo. A única vantagem deste trecho é ser menor que o indonésio e seguir pelo litoral. As paisagens são mais bonitas e o cansaço é menor.
No caminho, reduzimos a marcha para não atropelar pessoas que se encaminhavam para um enterro. Esta cena foi interessante pois as pessoas carregam nos ombros ou na cabeça, pedras de vários tamanhos para “enterrar” o finado. Não sei se são somente colocadas as pedras sobre o esquife ou se colocam terra também mas a cena marcou muito, principalmente por ver algo tão primitivo como este em pleno Século XXI.
Em casa
Quatro e meia da tarde, depois de doze horas e meia de viagem desde Kupang, chegamos em casa para um banho de lixa e uma cama mais que merecida. No final das contas pode-se pensar que não valeu o sacrifício. Pelo contrário, conhecer o que é realmente a Indonésia é algo muito interessante. Além disso pude constatar que o povo de lá é o mesmo de cá. A estatura, a cor de pele, os costumes, o jeito e até mesmo a religião (nesta ilha a maioria é católica) são iguais em ambos os lados. E neste pensamento vem a pergunta: por quê separaram? Creio que somente a política (e a politicagem) podem responder à isso.
Finalmente, menos uma folha em branco no passaporte, mais um local conhecido, mais história para contar. E disso é feita a caminhada da vida. Uma eterna experiência, boa ou ruim, que engrandece qualquer um. Agora é dar continuidade a caminhada colocando o pé em outras terras, outras paragens e esperando não encontrar novamente outro banheiro daqueles, afinal, tudo tem limite :-)
Felipe
28/06/2009 — 02:26
Salve!
Fui a sua palestra de CMSs em Floripa, e acabou q naquele dia, vc mostrou um site sobre uma pousada ou hotel q se nao me engano é na Indonésia, mas não consegui pegar o nome e lembro q vc disse q era uma barbada, chalés de primeira a preço de banana. Então, no dia não consegui pegar o link, mas hoje lembrei de fuçar nas suas publicações para ver se achava e não achei. Por isso peço encarecidamente q me mande o link, pois daqui a alguns mêses entro em férias e já estou planejando a minha viajem. Ok? Muito obrigado!!! Aliás, excelente palestra, gostei bastante.
José Antonio Meira da Rocha
03/12/2007 — 17:00
Tá ótimo! Vai falando que eu vou acompanhando aqui no Google Earth…